segunda-feira, 17 de agosto de 2020

ARTICULADORES TEXTUAIS E ARGUMENTAÇÃO

 

A produção textual exige que cuidemos da articulação entre orações, períodos, parágrafos e sequências maiores, porque todas essas partes contribuem para que o texto seja compreendido como uma unidade de sentido. As marcas responsáveis pelo encadeamento de segmentos textuais de qualquer extensão são denominadas articuladores textuais, operadores do discurso ou marcadores discursivos.

Com importante papel no estabelecimento da coesão, da orientação argumentativa e da coerência do texto, os articuladores atuam em diferentes níveis:

No da organização global do texto, em que explicitam as articulações das sequências ou partes maiores do texto.

No nível intermediário, em que assinalam os encadeamentos entre parágrafos ou períodos.

No nível microestrutural, em que indicam os encadeamentos entre orações e termos das orações.

 

EXEMPLO 1

Sim, o “Sunday Times” é preferível ao “Sunday Telegrafh” (mesmo com Rod Liddle, que também aparece aos domingos no jornal). Mas a melhor colheita das rotativas britânicas é, sem surpresa, a revista “The Oldie”, dirigida por Alexander Chancellor e só superficialmente vocacionada para a “Terceira Idade”.

Nas páginas da publicidade, lá encontramos casas de repouso; aparelhos auditivos; calçado ortopédico; e, juro, pela minha saúde, o último grito em cadeira de rodas.

Mas depois temos artigos superiormente escritos (e superiormente hilariantes) sobre as pequenas loucuras da vida actual.

AS seções onde aparecem esses textos têm títulos que são todo um programa: “Still wich us” (“ainda com a gente”, retratos biográficos de personalidades que se mantêm vivas); “Living Hell” (“puro inferno”, normalmente devotado à indústria do turismo); e, naturalmente, o heroico “Notes from the Sofa” (notas do sofá”, reflexões sobre tudo o que mexe, o que obviamente exclui o autor das notas).

Para concluir, Mary Kenny responde a pergunta dos leitores, explicando, entre outros mimos, por que motivo a demência não tem que ser o fim do mundo.

Fonte: COUTINHO, João Pereira. Folha de S. Paulo.

 

No texto, “para concluir” sinaliza para o leitor que o texto está chegando a sua etapa final. Daí se tratar de um articulador que atua na organização global do texto.

 

EXEMPLO 2

Na semana passada, o jornalista George Johnson, que escreve ocasionalmente sobre ciência para o “New York Times”, publicou um ensaio em que comparava dois livros relativamente recentes que oferecem pontos de vista opostos à natureza da realidade. Dado que esse é o tema de meu livro mais recente, “A Ilha do Conhecimento”, revejo alguns dos pontos dessas obras, contrastando-os com minha posição.

De um lado, temos o famoso filósofo Thamas Nagel, que argumentou em seu livro de 2012, “Mente e Cosmo”, que o materialismo mais simples, conforme é entendido hoje e usado na formulação das ciências físicas e biológicas, não é capaz de explicar alguns dos fenômenos naturais mais complexos, incluindo a origem e a evolução da vida e a natureza do consciente humano. (...)

De outro, temos o ultraplatonismo do físico Max Tegmark, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, que no livro “Nosso Universo Matemático” propõe que a realidade física, o espaço, o tempo, a matéria e a energia, em todas as suas manifestações, originam-se de uma realidade puramente matemática.

Fonte: GLEISER, Marcelo. Folha de S. Paulo. 

No texto, as expressões “de um lado” e “de outro” estabelecem a articulação entre parágrafos chamando a atenção do leitor para o que é colocado em foco num parágrafo (a obra do filósofo Thomas Nagel) e noutro (a obra do físico Max Tegmark), conforme proposta do autor apresentada no início de seu texto.

 

EXEMPLO 3

Deprê na firma

Empresas gastam milhões para entender o que faz seus funcionários felizes e para motivá-los, mas demonização da tristeza talvez não seja saudável, defende novo livro.

Fonte: LACOMBE, Milly. Folha de S. Paulo.

 

No exemplo, as palavras negritadas articulam as orações estabelecendo relações argumentativas de finalidade (para), adição (e) e oposição (mas), respectivamente.

Considerando o quanto esses recursos são importantes na constituição de um texto, da sua argumentação e do seu sentido, estudaremos a partir de agora os articuladores textuais destacando as funções que assumem.


FUNÇÕES DOS ARTICULADORES TEXTUAIS

Os articuladores textuais assumem variadas funções. Eis algumas:

 

situar ou ordenar os estados de coisas de que o enunciado fala no espaço e/ou no tempo;

estabelecer entre os enunciados relação do tipo lógico-semântico (causalidade, condicionalidade, disjunção etc.);

sinalizar relações discursivo-argumentativas;

funcionar como organizadores textuais;

introduzir comentários ora sobre o modo como o enunciado foi formulado (como aquilo que se diz é dito), ora sobre a enunciação (o ato de dizer).

Os articuladores podem ser agrupados de forma diferente de acordo com a função que assumem no texto. É disso que trataremos a seguir.



Articuladores de situação ou ordenação no tempo e/ou espaço

Esses articuladores servem para sinalizar as relações espaciais e temporais a que o enunciado faz referência demarcando, por exemplo, episódios na narrativa (ordenadores temporais) ou segmentos de uma descrição (ordenadores espaciais).

Fazem parte do conjunto de articuladores:

antes, depois, em seguida, a seguir, defronte de, além, mais além, do lado direito, do lado esquerdo, a primeira vez que, a última vez que, muito tempo depois etc.

 

EXEMPLO 1

A primeira vez que ele a encontrou, foi à porta da loja Paula Brito, no Rocio. Estava ali, viu uma mulher bonita, e esperou, já alvoroçado, porque ele tinha em alto grau a paixão das mulheres. Marocas vinha andando, parando e olhando como quem procura alguma casa. Defronte da loja, deteve-se um instante; depois, envergonhada e a medo, estendeu um pedacinho de papel ao Andrade, e perguntou-lhe onde ficava o número ali escrito.

Fonte: ASSIS, Machado de.

 

EXEMPLO 2

O menos comum, porém fatal

“TOCAR E MORDER”

Antes avançar com fúria, o tubarão rodeia a presa. Depois, sinaliza a ação encostando suavemente no corpo de seu alvo. Em seguida, dá o bote, crava as mandíbulas e não solta mais. As vítimas são mergulhadores em águas profundas.

 

Fonte: Veja.

 

ARTICULADORES DE RELAÇÕES LÓGICO-SEMÂNTICAS

Esses articuladores são responsáveis pela relação entre o conteúdo de duas orações. No texto, as relações lógico-semânticas entre orações são estabelecidas por meio de conectores. No conjunto das relações lógico-semânticas, podemos citar:

  

Relação de condicionalidade: pode ser configurada na construção se p então q que expressa conexão de duas orações: uma introduzida pelo conector se (oração antecedente) e outra por então que quase sempre se encontra implícita (oração consequente).

 

Se é o conector condicional típico que geralmente introduz um fato real (real ou hipotético) ou uma premissa a que se associa uma consequência ou inferência. Entre o conteúdo de p e o de q, instaura-se a seguinte relação:

condição para realização – consequência da resolução da condição enunciada

Outros conectivos que assumem valor condicional são:

caso, desde que, contanto que, a menos que, sem que, a não ser que, salvo se

EXEMPLO 1



No anúncio, a condição para realização é

1. Se você está vendo este copo meio vazio

2. Se você está vendo este copo meio cheio

E a consequência da resolução da condição enunciada em ambos os casos é

(Então) economize água

EXEMPLO 2

O MAIS COMUM E MENOS FATAL

“BATER E CORRER”

O tubarão ataca, percebe que a carne humana é menos suculenta do que a de uma tartaruga ou de um golfinho, por exemplo, e vai embora. Caso a mordida não atinja órgãos vitais, a vítima – normalmente banhista ou surfista – sobrevive.

Fonte: Veja.

No texto, a condição é expressa da seguinte forma:

Caso a mordida não atinja órgãos vitais

E a consequência:

(Então) a vítima – normalmente banhista ou surfista – sobrevive

Os exemplos nos dizem que o jogo funciona como se propuséssemos uma questão e obtivéssemos o consentimento no nosso interlocutor para a validade do que é proposto. Em geral, quando antecipamos a oração condicional, indicamos para o nosso interlocutor que se trata de conhecimento partilhado, ou seja, que não se trata de informação nova.

Relação de causalidade é entendida com base na construção p porque q que expressa conexão de duas orações: uma delas encerrando a causa que acarreta a consequência contida na outra. Em outras palavras, a relação de causa refere-se à conexão causa-consequência ou causa-efeito entre dois eventos.

Do ponto de vista do discurso, causa ou efeito não é um valor inerente a um fato na rua relação com o outro, por exemplo:

Ela está com os olhos vermelhos porque chorou bastante.

Mas, sim, uma possibilidade de sentido segundo a necessidade de compreensão do evento a que se faz referência. O emprego do conectivo tem justamente a função de explicitar a relação de causa para orientar a compreensão.

O conector mais usado para indicar a relação de causa é porque. Outros conectores utilizados para expressar relação de causa são:

como, pois, porquanto, já que, uma vez que, dado que, visto que

As orações causais iniciadas com porque geralmente são pospostas, sinalizando para o interlocutor se tratar de uma informação nova.

Quando antepostas, as orações causais exprimem um fato que se pressupõe já conhecido do interlocutor e chama a atenção para isso pela focalização causada pela extraposição, segundo defende Neves (2011).

EXEMPLO 3 


Relação de mediação ou finalidade se exprime por intermédio de duas orações, numa das quais se explicita o meio para atingir um fim expresso na outra. Trata-se de orações que expressam um efeito visado, um propósito, um fim por meio do uso de conectores como

para que, a fim de que

É muito comum a relação de finalidade ser expressa por uma oração encabeçada pela preposição para ou pela locução a fim de, como mostram os exemplos:

Deputados vão ao STF a fim de anular votação de idade penal.

Universitário de Manaus cria site para oferecer experiências como dormir na casa de nativos e pescar em igarapés.

Relação de disjunção ou alternância é expressa através do conectivo ou que associa dois fatos, duas ideias, negando a união deles.

O conector ou pode ser usado:

Com valor exclusivo (= um ou outro, mas não os dois, ou seja, os elementos se excluem).

Ou se tem chuva e não se tem sol,

ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,

ou se põe o anel e não se calça a chuva!

Já reparou a dificuldade feminina para saber o que se pode (ou não) fazer depois de uma determinada idade?

Devo ou não pintar o cabelo? Posso deixar o cabelo comprido? É ridículo ter franja ou fazer rabo de cavalo? Qual é o comprimento adequado da saia? E o tamanho do biquíni?

Com valor inclusivo (= um ou outro, possivelmente ambos, ou seja, os elementos se somam).

Sabe quando duas pessoas estão brigando e aparece alguém no meio para apartar a confusão, pedindo para elas pararem de se agredir e tentando fazer que voltem a ser amigas? Ou quando duas pessoas que falam línguas diferentes não conseguem se entender e, mais uma vez, é preciso que alguém resolva a situação, conversando com cada uma delas em seus próprios idiomas? Pois é

mais ou menos isso que faz um diplomata, só que não entre pessoas, mas entre países.

Fonte: Quando crescer. VÁRIOS AUTORES.

Relação de temporalidade é construída de várias formas podendo indicar simultaneidade, anterioridade, posterioridade, continuidade ou progressão.

a. tempo exato, pontual:

quando, mal, assim que, nem bem, logo que, no momento em que

EXEMPLO

Minha cachorra não suporta não ser o alvo da nossa atenção. Ela detesta quando sentamos para ver televisão, os quatro olhando fixamente para a parede, e não para ela. Como que em protesto, ela senta e nos encara, um a um, fixamente. O jogo é não olhar para ela – porque assim que retribuímos seu olhar, ela traz o brinquedo da vez, rabo abanando, e exige atenção ativamente.

Fonte: HERCULANO-HOUZEL, Suzana. Folha de S. Paulo.

 

b. tempo anterior (antes que)

 

EXEMPLO

 

Antes que se imagine o tubarão à espreita como mera cena de cinema ou praias longínquas, tudo muito distante do Brasil, convém lembrar o passado recente do litoral sul de Pernambuco. O estado contabiliza 56% das histórias de ataque no Brasil. “Pernambuco não tem mais tubarões que outros estados brasileiros. Aqui há uma combinação de muitos fatores que levam ao surto de ataques a partir de 1992”, explica o pesquisador Flávio Hazin, da Universidade Federal Rural de Pernambuco.

Fonte: Veja.  

 

c. tempo posterior (depois que)

 

EXEMPLO

 

Bacon, Calabresa, Costelinha. Qualquer glutão esmorece ao ser informado de que os nomes dos suculentos ingredientes agora batizam criaturas graciosas, carentes.

A domesticação de porcos, que não para de crescer no Brasil, começa a fomentar negócios e a movimentar o mercado de bichos de estimação.

“É o fim da feijoada! Muita gente deixa de comer carne de porco depois que vira dono de porquinho”, anima-se Fabiana Varoni, que há um ano expandiu sua granja no interior de São Paulo para começar a vender os miniporcos, como são chamados os bichos, que podem pesar até 70 quilos quando adultos.

Fonte: CUNHA, Joana. Folha de S. Paulo.

 

d. tempo simultâneo (enquanto)

 

EXEMPLO

 

Enquanto o navio avançava rio acima, o administrador de empresas Carlos Silva, 36, desenhava a bordo do Grand Amazon um modelo de negócio para conter a poluição de suas águas disseminando “privadas secas”. Trata-se de uma tecnologia social de baixo custo, na forma de caixotes de madeira que substituem o vaso convencional.

Fonte: TRINDADE, Eliane. Folha de S. Paulo.

e. tempo progressivo (à medida que, à proporção que etc.)

 

EXEMPLO

 

A ocupação das favelas do Rio pelos traficantes de drogas é um fenômeno particular desta cidade e isso data de muitos anos (...). À medida que o seu poder se consolidava, eles passaram de bandidos a justiceiros, punindo quem se comportava mal e, com isso, evitavam a volta da polícia a seus domínios.

Fonte: GULLAR, Ferreira. Folha de S. Paulo.

 

Relação de conformidade é expressa pela conexão entre duas orações em que se mostra a conformidade de conteúdo de uma com algo afirmado/asseverado na outra. Para a construção da relação de conformidade, podemos recorrer aos conectores:

 

conforme, consoante, segundo, como

 

EXEMPLO



Relação de modo em que expressa numa oração o modo como se realizou ou se realiza o evento ou a ação contida em outra.

 

EXEMPLO

 

A imagem retoma Gilberto Freyre em Casa-Grande&Senzala. À sombra de flamboyats, os meninos, todos negros ou mulatos, puxam cavalos para deleite do “senhozinho”. A sociedade patriarcal brasileira está ali sintetizada sem que ninguém se dê conta. As crianças dos dois lados são exploradas. As do chão doam seu trabalho braçal. As da montaria estão ali para reproduzir a marca registrada da pobreza, caso ainda persista alguma dúvida quanto ao lugar na pirâmide ocupada por cada uma.

Fonte: BRÊTAS, Pollyana. 


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