segunda-feira, 25 de março de 2019

REPORTAGEM

Como silenciamos o estupro
Todo mundo concorda que estupro é um dos piores crimes que existem. Ainda assim, 99% dos agressores sexuais estão soltos ― e eles não são quem você imagina.
Culpa de uma tradição milenar: o nosso hábito de abafar a violência sexual a qualquer custo.
Entenda aqui por que é tão difícil falar de estupro.


Por Karin Hueck

Luci era uma donzela de13 anos que, no século X, vivia em um importante vilarejo com seus pais. Certo dia de verão, ela saiu para ir à feira com uma amiga quando sentiu uma vontade enorme de ir ao banheiro. Sem ter aonde ir, entrou no primeiro casebre do caminho e resolveu fazer xixi por lá mesmo. Foi quando um homem de 35 anos a encontrou e decidiu que a tomaria à força. O rapaz a prendeu dentro da cabana e a violentou: foi tanta brutalidade que Luci ficou toda ensanguentada e com as vestes rasgadas. Quando a menina chegou em casa, seu pai se encheu de desgosto – não podia acreditar que a filha não era mais virgem. Ainda assim, a família decidiu buscar justiça e foi falar com o mandatário local para mandar prender o criminoso. O oficial logo encontrou o acusado, que, depois de muito tempo, acabou confessando o crime. Assim, de acordo com a lei da época, o oficial apresentou duas opções para a família: ou o homem ia preso ou assumia a menina e se casava com Luci para resgatar sua “honra”. Como o pai da menina não queria mais saber daquela filha impura, mandou ela se casar com seu estuprador. Foi o que aconteceu. No dia seguinte, Luci se mudou para a cabana onde foi violentada, onde passou 11 anos ao lado de seu monstruoso marido. Ele a engravidou por cinco vezes e bateu nela todos os dias enquanto permaneceram casados.
A história seria apenas mais um terrível conto medieval, se eu não tivesse esquecido um “X” na data lá em cima. O caso de Luci não aconteceu no século X, mas no século XX – em 1980, para ser exato. O importante vilarejo era a cidade de Guarulhos, em São Paulo, e Luci é Lucineide Souza Santos, uma cabeleireira de 46 anos que, hoje, está separada de seu estuprador. (E, se você ficou na dúvida: sim, até 2002 existia na lei brasileira a possibilidade de o estuprador não cumprir pena caso ele se casasse com sua vítima.)
Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, todos os anos cerca de 50 mil pessoas são estupradas no Brasil. Esses são os números oficiais, obtidos a partir da papelada formal. Mas eles não correspondem à realidade. O estupro é um dos crimes mais subnotificados que existem e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada estima que os dados oficiais representem apenas 10% dos casos ocorridos. Ou seja, o verdadeiro número de pessoas estupradas todos os anos no Brasil é mais de meio milhão. Nos EUA, onde existem dados longitudinais, de acordo com o Center for Disease Control and Prevention, uma em cinco mulheres vai ser estuprada ao longo da vida.
Os casos registrados são baixos porque existe um comportamento persistente que cerca o estupro: o silêncio. Vítimas não denunciam seus agressores, policiais não investigam as acusações, famílias ignoram os pedidos de ajuda, instituições não entregam seus criminosos – esses mecanismos invisíveis fazem com que 90% da violência sexual jamais seja conhecida por ninguém. E isso, sim, é um crime ainda maior do que a soma de cada caso.
Apesar de entendermos o estupro como um dos piores crimes que podem acontecer a alguém – segundo pesquisas sobre percepção de crueldade, ele só perde para o assassinato, somos estranhamente incrédulos para acreditar que ele realmente acontece. O estupro é o único crime no qual a vítima é julgada junto com o criminoso. Imagine que roubaram o seu celular e você decide fazer um B.O. Agora imagine que o delegado que pegou o seu caso resolve perguntar onde você foi assaltado, que horas eram e se você era conhecido por trocar de aparelho o tempo todo. Depois ele pergunta se você tem certeza de que o assalto realmente aconteceu ou se você não deu o celular ao bandido por vontade própria. Se você então explica que o roubo foi de madrugada e depois de você ter tomado umas cervejas, o delegado decide – por conta própria – que não houve crime algum: você estava na rua e bêbado, quem pode garantir que você está falando a verdade? Ou então, pior, quem disse que você não queria ter sido assaltado?
Isso acontece com quem foi estuprado o tempo todo. Mulheres relatam como são recebidas com desconfiança quando resolvem contar suas histórias para alguém. Pessoas perguntam que roupa ela vestia, onde ela estava, que horas eram, se estava bêbada, se já não havia ficado com o estuprador alguma vez, se deu a entender que queria fazer sexo e até se já teve muitos namorados antes. E essas perguntas podem vir de qualquer um. Foi o que aconteceu com a menina Maria, por exemplo, estuprada pelo avô aos 14 anos. Quando ela resolveu pedir ajuda a avó, ouviu que a culpa havia sido dela. “Você saiu do banho de toalha na frente do seu avô, que não sabe controlar os instintos.” O avô seguiu normalmente a vida, e Maria viveu com a culpa de quase ter desestruturado toda
 a sua família, como insinuou a avó. Comentários assim surgem
 de amigos, familiares, policiais, médicos, advogados – e até de juízes. Todas as instâncias trabalham para abafar o crime e jogar o assunto para baixo do tapete. Todas mesmo.
[…]

Perguntar ofende

Não é fácil denunciar um estupro.   preciso ir à delegacia e prestar depoimento para funcionários que nem sempre sabem lidar com vítimas de violência sexual (não há nenhum tipo de treinamento especial para isso aqui no Brasil) e que podem, sim, fazer as perguntas e insinuações que nosso delegado fictício lá atrás fez. Se quiser que o caso tenha continuidade no processo jurídico, a vítima terá de ir ao IML fazer o exame médico (consultas feitas em postos de saúde ou médicos particulares não têm validade legal). O exame é constrangedor: o médico legista examina o corpo inteiro da mulher em busca de fibras ou pelos que possam incriminar alguém, além de vasculhar vagina, ânus e períneo por sinais de laceração, feridas ou esperma. A mulher é apalpada, penetrada por instrumentos e interrogada sobre detalhes do crime, apenas horas depois do ocorrido.
Em seguida, a agredida terá de torcer para que seu caso seja encaminhado para os tribunais: quem decide isso são promotores e juízes, e a maioria deles prefere dar continuidade apenas aos casos que têm maior chance de serem provados nas cortes. Isso quer dizer que, se não houver sinais de esperma, ou se a vítima não tiver sido ameaçada por arma de fogo ou se ela não apresentar machucados porque preferiu ficar imóvel e não apanhar do estuprador, as provas ficam mais frágeis. Quem poderá garantir que a relação foi diante de ameaça, afinal? Se a mulher conhecer o criminoso, então, as chances de seu caso ser levado a frente caem drasticamente. Primeiro, pelo medo de retaliação: muitas preferem nem fazer a queixa para não serem perseguidas pelos seus agressores. E, segundo, porque é quase impossível provar se houve ou não consentimento. Se a vítima chegar a delegacia dizendo que foi estuprada por um namorado, marido, ficante ou amigo, é quase certeiro que seu caso não vá para frente.
Mesmo se for parar no tribunal, a acusação corre o risco de se voltar contra a mulher, como já vimos. “Os advogados podem usar qualquer tipo de argumento para invalidar a vítima. Geralmente são argumentos moralistas – e que funcionam”, diz Ana Paula Meirelles Lewin, coordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Não é à toa, então, que 90% das mulheres desistam de denunciar o crime: sabe-se lá o que advogados e procuradores vão inventar sobre ela. O estupro acaba silenciado pela vergonha, uma arma eficientíssima. E vergonha é a palavra-chave nesses casos. “O estupro é um crime extremamente íntimo, uma violação profunda, como pouquíssimas outras coisas são. Se as pessoas que lidam com esses casos – médicos, advogados, policiais – não tiverem respeito por essa violação, elas não vão conseguir ajudar as mulheres”, diz o médico Jefferson Drezett, que atende vítimas de violência sexual no hospital Perola Byington, em São Paulo.
[]
B.O.: Abreviatura de boletim de ocorrência, documento em que um escrivão
de uma delegacia policial registra a ocorrência de um crime ou queixa.

(Superinteressante, nº 349, p. 32-41. Abril Comunicações S.A.)



1. Em relação à reportagem lida, responda:

a. Qual é o tema central?
b. Qual é a finalidade principal?

2. Como é comum às reportagens em geral, o texto é aberto com uma introdução.
Qual é o papel da introdução na reportagem lida?

3. O 1º parágrafo do texto é constituído pelo relato de uma história aparentemente ocorrida na Idade Média.
a. Que palavras e expressões contribuem para criar uma atmosfera medieval para o relato?

b. Considerando-se a finalidade da reportagem, que função esse relato
desempenha?
c. Que outro relato é utilizado no texto?

4. Nas reportagens, é comum haver dados numéricos e estatísticos, como meio de fundamentar cientificamente as informações. De acordo com a
reportagem lida:
a. Quantos são provavelmente os casos reais de estupro no Brasil por
ano?
b. Percentualmente, quantos desses casos são denunciados por ano?
c. O que esses números revelam quanto à gravidade do problema?
5. Muitas vezes o estupro é associado a fatores como nível social e grau de escolaridade dos estupradores, ou se pensa que o estuprador é sempre um estranho. Esses dados são confirmados pelos dados estatísticos apresentados no texto? Justifique sua resposta com elementos do texto.
6. Releia este trecho do 5º parágrafo do texto:
“O estupro é o único crime
no qual a vítima é julgada junto
com o criminoso.”
a. Explique essa afirmação.
b. Logo depois dessa afirmação, é introduzida uma comparação entre o estupro e o roubo de celular. Qual é a função dessa comparação, na
construção do texto?
c. No mesmo parágrafo, é relatado o caso de Maria, que foi estuprada
pelo avô. Que papel esse relato cumpre no contexto?
7. De acordo com o texto, um dos principais problemas que envolvem o estupro é o silêncio. Por que as vítimas silenciam? Aponte ao menos três causas.
8. A reportagem não é exatamente um texto de opinião, porém, nela, mais do que na notícia, o jornalista tem liberdade para expressar seu ponto de vista sobre o tema e até apontar saídas ou fazer sugestões.
a. A autora da reportagem chega a se posicionar claramente sobre o
tema? Se sim, qual é o ponto de vista que ela expressa? Comprove
com marcas do texto.
b. A autora não chega a explicitar propostas de solução para o silêncio que envolve as vítimas de estupro. É possível, porém, inferir no texto saídas para o problema? Justifique sua resposta com elementos do texto.
c. O título do texto – “Como silenciamos o estupro” – justifica sua resposta no item anterior? Por quê?
9. Ao produzir uma reportagem, o jornalista pode lançar mão de vários recursos
ou procedimentos que conferem amplitude e profundidade ao
tema. Alguns deles são estes:
entrevista com especialistas
relato de casos verídicos
comparações
dados estatísticos
exemplo histórico
citação de pessoas ilustres (filósofos, escritores, líderes)
Quais desses recursos ou procedimentos foram utilizados na reportagem em estudo?
10. A entrevista foi publicada na revista Superinteressante, que é voltada a um público constituído por estudantes, jovens e adultos, que gostam de assuntos científicos e de interesse geral. Observe a linguagem empregada na reportagem.
a. Foi empregada a norma culta?
b. Como é a linguagem quanto a formalidade ou informalidade?
c. Esse tipo de linguagem é adequado ao perfil da revista e do público?
Por quê? Justifique sua resposta.

15 comentários:

  1. Respostas entrego apenas para os professores!

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    1. Boa Tarde queria as respostas para imprimir para ajudar meus alunos do 2° ano do ENSINO MÉDIO por favor

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    2. envie pelo meu gmail gabrielmendes1811@gmail.com desdejá agradeço a compreensão

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    3. Pode mim passar pra mim tá passando para meus alunos?

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  2. ola queria as respostas para imprimir para ajuar meus alunos

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  3. Bom dia queria as resposta poderia mim enviar pra passar pra ajuda meus alunos

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  4. Puder enviar pelo meu gmail ma8439433@gmail.com

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  5. Me enviar as respostas pelo meu gmail ericac123457@gmail.com

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  6. Preciso desse material com as respostas, para trabalhar com meus alunos, email sj0995126@gmail.com, desde já agradeço a compreensão

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