A
Escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840.
Naquele dia — uma segunda-feira, do mês de maio — deixei-me estar alguns instantes
na Rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava entre o morro de
S. Diogo e o Campo de Sant’Ana, que não era então esse parque atual, construção
de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de
lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. De repente
disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão.
Na
semana anterior tinha feito dous suetos, e, descoberto o caso, recebi o pagamento
das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. As sovas de meu
pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido
e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição comercial, e tinha ânsia de
me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para me meter de
caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao balcão. Ora,
foi a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o colégio. Não
era um menino de virtudes.
Subi
a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo; ele
entrou na sala três ou quatro minutos depois. Entrou com o andar manso do
costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e desbotada, calça
branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo e tinha perto de cinquenta
anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé e o lenço
vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos pela sala. Os meninos,
que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram a sentar-se. Tudo
estava em ordem; começaram os trabalhos.
— Seu
Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o filho do mestre. Chamava-se
Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência tarda. Raimundo
gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou cinquenta
minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o cérebro. Reunia a
isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara doente; raramente
estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se antes. O mestre
era mais severo com ele do que conosco.
— O
que é que você quer?
—
Logo, respondeu ele com voz trêmula.
Começou
a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola;
mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil
de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção.
Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro. Na
lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas deixava-me
estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza nem
espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquele dia foi a mesma coisa; tão depressa
acabei, como entrei a reproduzir o nariz do mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes
diferentes, das quais recordo a interrogativa, a admirativa, a dubitativa e a cogitativa.
Não lhes punha esses nomes, pobre estudante de primeiras letras que era; mas,
instintivamente, dava-lhes essas expressões. Os outros foram acabando; não tive
remédio senão acabar também, entregar a escrita, e voltar para o meu lugar.
Com
franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por
andar lá fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos
vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro
e do gênero humano. Para cúmulo de desespero, vi através das vidraças da escola,
no claro azul do céu, por cima do morro do Livramento, um papagaio de papel,
alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma cousa soberba. E
eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática nos
joelhos.
— Fui
um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.
— Não
diga isso, murmurou ele.
Olhei
para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra vez que queria pedir-me
alguma cousa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de novo, e,
rápido, disse-me que esperasse um pouco; era uma coisa particular.
— Seu
Pilar... murmurou ele daí a alguns minutos.
— Que
é?
—
Você...
—
Você quê?
Ele deitou
os olhos ao pai, e depois a alguns outros meninos. Um destes, o Curvelo, olhava
para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa circunstância, pediu
alguns minutos mais de espera. Confesso que começava a arder de curiosidade.
Olhei para o Curvelo, e vi que parecia atento; podia ser uma simples
curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma cousa entre
eles. Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos, era mais velho
que nós.
Que
me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito, falando-lhe
baixo, com instância, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava dele nem
de mim. Ou então, de tarde...
— De
tarde, não, interrompeu-me ele; não pode ser de tarde.
—
Então agora...
—
Papai está olhando.
Na
verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-o muitas
vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós também éramos finos;
metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as folhas
do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as ideias e as paixões.
Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era grande a
agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude
averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E
essa lá estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco
olhos do diabo. Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força
do costume, que não era pouca. E daí,
pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a ponto de
poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me
que lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos
de quando em quando, ou tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia
a valer.
No
fim de algum tempo — dez ou doze minutos — Raimundo meteu a mão no bolso das
calças e olhou para mim.
—
Sabe o que tenho aqui?
—
Não.
— Uma
pratinha que mamãe me deu.
—
Hoje?
—
Não, no outro dia, quando fiz anos...
—
Pratinha de verdade?
— De
verdade.
Tirou-a
vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do rei, cuido que
doze vinténs ou dous tostões, não me lembro; mas era uma moeda, e tal moeda que
me fez pular o sangue no coração. Raimundo revolveu em mim o olhar pálido;
depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-lhe que estava caçoando, mas
ele jurou que não.
— Mas
então você fica sem ela?
—
Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô lhe deixou, numa
caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta?
Minha
resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para a mesa do
mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto amarelo, que queria
sorrir. Em seguida propôs-me um negócio, uma troca de serviços; ele me daria a
moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não conseguira reter nada
do livro, e estava com medo do pai. E concluía a proposta esfregando a pratinha
nos joelhos...
Tive
uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma ideia antes
própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra
mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos
termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma
lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem
poder dizer nada.
Compreende-se
que o ponto da lição era difícil, e que o Raimundo, não o tendo aprendido,
recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo do pai. Se me
tem pedido a cousa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como de outras
vezes, mas parece que era lembrança das outras vezes, o medo de achar a minha
vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria, — e pode ser mesmo que
em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal, — parece que tal foi a causa da proposta.
O pobre-diabo contava com o favor, — mas queria assegurar-lhe a eficácia, e daí
recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava como relíquia ou
brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos, à minha vista, como uma
tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para mim, que só
trazia cobre no bolso, quando trazia alguma cousa, um cobre feio, grosso, azinhavrado...
Não
queria recebê-la, e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, que continuava a
ler, com tal interesse, que lhe pingava o rapé do nariz. — Ande, tome, dizia-me
baixinho o filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se fora diamante...
Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia? E ele não podia ver
nada, estava agarrado aos jornais, lendo com fogo, com indignação...
—
Tome, tome...
Relancei
os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao Raimundo que
esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, então dissimulei; mas daí a
pouco deitei-lhe outra vez o olho, e — tanto se ilude a vontade! — não lhe vi
mais nada. Então cobrei ânimo.
— Dê
cá...
Raimundo
deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das calças, com um
alvoroço que não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha à perna.
Restava prestar o serviço, ensinar a lição e não me demorei em fazê-lo, nem o
fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho de papel
que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. Sentia-se que despendia um esforço
cinco ou seis vezes maior para aprender um nada; mas contanto que ele escapasse
ao castigo, tudo iria bem.
De
repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso
que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para ele,
achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a remexer-se no
banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a
testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.
—
Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.
—
Diga-me isto só, murmurou ele.
Fiz-lhe
sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso, lembrava-me o
contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois, tornei a
olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau,
estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em brasas, ansioso
que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras vezes, nem o
mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo,
pontuando-os com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duas pancadinhas
na mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio,
guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele. Imaginei-me
ali, com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no bolso das
calças, que eu não daria a ninguém, nem que me serrassem; guardá-la-ia em casa,
dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me não fugisse, ia-a
apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a inscrição,
com uma grande vontade de espiá-la.
— Oh!
Seu Pilar! — bradou o mestre com voz de trovão.
Estremeci
como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei com o mestre,
olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da mesa, em pé, o
Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.
—
Venha cá! — bradou o mestre.
Fui e
parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência dentro um par de olhos
pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém mais lia,
ninguém fazia um só movimento. Eu, conquanto não tirasse os olhos do mestre, sentia
no ar a curiosidade e o pavor de todos.
—
Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? — disse-me o
Policarpo.
—
Eu...
— Dê
cá a moeda que este seu colega lhe deu! — clamou.
Não
obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito. Policarpo
bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a mão no
bolso, vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Ele examinou-a de um e outro lado,
bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua. E então disse-nos uma
porção de cousas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de praticar uma
ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo íamos ser castigados.
Aqui
pegou da palmatória.
—
Perdão, seu mestre... solucei eu.
— Não
há perdão! Dê cá a mão! Dê cá! Vamos! Sem-vergonha! Dê cá a mão!
—
Mas, seu mestre...
—
Olhe que é pior!
Estendi-lhe
a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por cima dos
outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e inchadas.
Chegou a vez do filho, e foi a mesma cousa; não lhe poupou nada, dois, quatro,
oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos sem vergonhas, desaforados,
e jurou que se repetíssemos o negócio apanharíamos tal castigo que nos havia de
lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões!
Tratantes!
Faltos de brio!
Eu,
por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos os olhos
em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios do mestre.
Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ninguém faria igual negócio.
Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não olhei logo para ele, cá dentro
de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos, tão certo como
três e dous serem cinco.
Daí a
algum tempo olhei para ele; ele também olhava para mim, mas desviou a cara, e
penso que empalideceu. Compôs-se e entrou a ler em voz alta; estava com medo.
Começou a variar de atitude, agitando-se à toa, coçando os joelhos, o nariz. Pode
ser até que se arrependesse de nos ter denunciado; e na verdade, por que denunciar-nos?
Em que é que lhe tirávamos alguma cousa? "Tu me pagas! tão duro como
osso!" dizia eu comigo.
Veio
a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria brigar
ali mesmo, na Rua do Costa, perto do colégio; havia de ser na Rua larga São Joaquim.
Quando, porém, cheguei à esquina, já o não vi; provavelmente escondera-se em
algum corredor ou loja; entrei numa botica, espiei em outras casas, perguntei por
ele a algumas pessoas, ninguém me deu notícia. De tarde faltou à escola.
Em
casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas, menti a
minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite, mandando ao
diabo os dous meninos, tanto o da denúncia como o da moeda. E sonhei com a moeda;
sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com ela na rua, e a apanhara,
sem medo nem escrúpulos...
De
manhã, acordei cedo. A ideia de ir procurar a moeda fez-me vestir depressa. O
dia estava esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem contar as
calças novas que minha mãe me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo isso, e a
pratinha... Saí de casa, como se fosse trepar ao trono de Jerusalém. Piquei o
passo para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim não andei tão
depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram bonitas! Mirava-as, fugia
aos encontros, ao lixo da rua...
Na
rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente, rufando.
Não podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido, igual, direita,
esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram andando. Eu senti
uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já lhes disse: o dia estava
lindo, e depois o tambor... Olhei para um e outro lado; afinal, não sei como foi,
entrei a marchar também ao som do rufo, creio que cantarolando alguma cousa:
Rato
na casaca... Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela
Saúde, e acabei a manhã na Praia da Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas,
sem pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E contudo a pratinha era
bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um
da corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor...
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