Leia com atenção o
texto seguinte: O impensável
O inimaginável acontece.
Supera nossa capacidade de prever o pior. Conduz-nos até a borda do real e nos
abandona ali, pasmos, incapazes de representar mentalmente o atroz. O pior
pesadelo do escritor Primo Levi, em Auschwitz, era voltar para casa e não
encontrar quem acreditasse no horror do que ele tinha a contar.
Acreditar no horror
exige imaginá-lo de perto e arriscar alguma identificação com as vítimas, mesmo
quando distantes de nós. Penso no assassinato dos cidadãos cariocas David
Florêncio da Silva, Wellington Gonzaga Costa e Marcos Paulo da Silva por 11
membros do Exército encarregados de proteger os moradores do morro da
Providência. Assassinados por militares, sim, pois não há diferença entre
executar os rapazes e entregá-los à sanha dos traficantes do morro rival.
A notícia é tão atroz
que o leitor talvez tenha se inclinado a deixar o jornal e pensar em outra
coisa.
Não por insensibilidade
ou indiferença, quero crer, mas pela distância social que nos separa deles,
abandonamos mentalmente os meninos mortos à dor de seus parentes. Abandonamos
os familiares que denunciaram o crime às possíveis represálias de outros
―defensores da honra da instituição‖. Desistimos de nossa indignação sob o
efeito moral das bombas que acolheram o protesto dos moradores do Providência.
Nós, público-alvo do
noticiário de jornais e TV, que tanto nos envolvemos com os assassinatos dos
―nossos‖, viramos a página diante da morte sob tortura de mais três rapazes
negros, moradores dos morros do Rio de Janeiro. É claro que esperamos que a justiça
seja feita. Mas guardamos distância de um caso que jamais aconteceria com um de
nós, com nossos filhos, com os filhos dos nossos amigos.
O absurdo é uma das
máscaras do mal: tentemos enfrentá-lo. Façamos o exercício de imaginar o
absurdo de um crime que parece ter acontecido em outro universo. Como assim,
demorar mais do que cinco minutos para esclarecer a confusão entre um celular e
uma arma? E por que a prisão por desacato à autoridade? Os rapazes reclamaram,
protestaram, exigiram respeito — ou o quê? Não pode ter sido grave, já que o
superior do tenente Ghidetti liberou os acusados.
Mas o caso ainda não
estava encerrado? O tenente, que não se vexa quando o Exército tem que negociar
a ―paz‖ no morro com os traficantes, se sentiu humilhado por ter sido
desautorizado diante de três negros, mais pés-de-chinelo que ele? Como assim,
obrigá-los a voltar para o camburão — até o morro da Mineira? Entregues nas
mãos dos bandidos da ADA em plena luz do dia, como um ―presentinho‖ para eles
se divertirem? Era para ser ―só uma surra‖? Como assim?
Imaginaram o desamparo,
o desespero, o terror? Não consigo ir adiante e imaginar a longa cena de
tortura que conduziu à morte dos rapazes. Mas imagino a mãe que viu seu filho ensanguentado
na delegacia e não teve mais notícias entre sábado e segunda-feira. E que
depois reconheceu o corpo desfigurado, encontrado no lixão de Gramacho. Imagino
a cena que ela nunca mais conseguirá deixar de imaginar: as últimas horas de
vida de seu menino, o desamparo, o pânico, a dor.
―Onde o filho chora e a
mãe não escuta‖ era como chamávamos as dependências do Doi-Codi onde tantos
morreram nas mãos de torturadores.
Ainda falta imaginar a
promiscuidade entre o tenente, seus subordinados e os assassinos do morro da
Mineira: o desacato à autoridade é crime sujeito a pena de morte e a tortura de
inocentes é objeto de cumplicidade entre traficantes e militares? Claro, os traficantes
serão mortos logo pelo trabalho sujo do Bope. Se outros cidadãos morrerem por
acidente, azar; são as vicissitudes da vida na favela.
Quando membros
corruptos da PM carioca mataram a esmo 30 cidadãos em Queimados, houve um
pequeno protesto em Nova Iguaçu. Cem pessoas nas ruas, familiares dos mortos,
nada mais. Nenhum grupo pela paz foi até lá. Nenhuma Viva Rio reuniu gente de
branco a marchar em Ipanema. Ninguém gritou ―basta!‖ na zona sul. Não é a mesma
cidade, o mesmo país. Não nos identificamos com os absurdos que acontecem com
eles.
Não haverá um freio
espontâneo para a escalada da truculência da Polícia e do tráfico, nem para o
franco conluio entre ambos (e, agora, membros do Exército) que vítima,
sobretudo, cidadãos inocentes. Não haverá solução enquanto a outra parte da
sociedade, a chamada zona sul — do Rio, de São Paulo, de Brasília e do resto do
país —, não se posicionar radicalmente contra essa espécie de política de
extermínio não oficial, mas consentida, a que assistimos incrédulos, dos negros
pobres do Rio.
Maria Rita Kehl,
psicanalista e ensaísta, autora do livro Sobre Ética e Psicanálise (Cia.
das Letras, 2002). Folha de S. Paulo, 22/6/2008.
Com base na leitura,
responda às seguintes questões:
01.
Qual o tema abordado no texto?
02.
Qual o ponto de vista defendido pela autora?
03.
Ao defender seu ponto de vista sobre o tema abordado, que recursos
(informações, fatos, opiniões, argumentos) foram utilizados pela autora?
Relacione-os.
04.
Que proposta de intervenção a autora elaborou para o problema abordado no texto?
05. A seguir, elaboramos o título e o parágrafo
introdutório (tese) de um texto dissertativo. Você deverá desenvolvê-lo e
concluí-lo. Apresentamos também sugestões de desenvolvimento e
conclusão. Fique à vontade para aproveitar ou não as ideias sugeridas. O
importante é que você utilize argumentos que sustentem a tese proposta, além de
uma conclusão apropriada.
Polícia: proteção ou ameaça?
O segredo da autoridade não é a força, e sim o
prestígio moral, afirmou Alceu de Amoroso Lima. Contrariando essa assertiva,
policiais brasileiros têm protagonizado uma sucessão de episódios que vão desde
crimes diversos até chacinas, revelando um total despreparo psicológico e
social.
Sugestões de desenvolvimento:
Abuso de autoridade.
Participação em crime organizado (sequestros,
tráfico de drogas).
Torturas, maus-tratos, humilhação – métodos de
investigação.
Corrupção (subornos).
Despreparo psicológico, baixos salários, pouco
ou nenhum treinamento.
Reflexo da sociedade descontrolada.
Impunidade (polícia julga polícia),
corporativismo.
Perda da credibilidade.
População
duvida da integridade da polícia.
Sugestões de conclusão:
Prestígio moral – como readquiri-lo?
Treinamento,
fiscalização, punição efetiva dos policiais criminosos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário